PÚBLICO (8/12/2024)
A época da apanha da azeitona é a mais importante para comunidades rurais palestinianas. Mas com o intensificar de ataques do Exército e colonos israelitas, é também a mais perigosa. Apesar dos riscos, os palestinianos continuam a cuidar das suas oliveiras, e a colher os frutos de uma tradição com milhares de anos.
Walaja, Palestina
Dias antes de começar a colheita de uma das oliveiras mais antigas do mundo, Salah Abu Ali já tinha tudo preparado no seu terreno em Walaja, uma aldeia palestiniana confinada entre Jerusalém e Belém.
Estendeu tapetes vermelhos em volta do enorme tronco enrugado e foi buscar escadas de madeira para chegar aos ramos mais altos da oliveira. “Tem 25 metros de diâmetro e 13 metros de altura”, explicou Salah. “Num bom ano, chega a produzir meia tonelada de azeitonas. Os países do Golfo têm petróleo, nós temos azeite. Esta oliveira é um tesouro”, diz orgulhoso.
Esperou pela chuva que chega cada ano mais tarde, cada vez menos, a este canto do Mediterrâneo. No dia 15 de Novembro, depois de os céus se encherem de nuvens e de os primeiros aguaceiros do Outono terem finalmente chegado para regar as oliveiras e lavarem os frutos, Salah anunciou a tão aguardada colheita. Recebeu familiares e amigos, vizinhos e estrangeiros, todos reunidos em torno da monumental oliveira.
“Esperamos o ano inteiro pela colheita, e quando chega é uma festa”, diz Salah, enquanto apanha azeitonas, deixando-as cair nos tapetes que estendeu no chão, para depois reunir os frutos em sacos levados para o lagar mais próximo. A maioria das azeitonas vai ser transformada em azeite virgem extra. Uma parte é separada para conserva. Tudo é feito à mão, como se faz há milhares de anos.
A época da apanha da azeitona, entre Outubro e Novembro, é a altura do ano mais importante para as comunidades rurais na Palestina. Cerca de 100 mil famílias palestinianas dependem da produção do azeite, uma das principais fontes de rendimento local. Tradicionalmente, é uma época de celebração e de juntar a comunidade. Várias gerações vão juntas para o campo para apanhar azeitonas, cantar e tocar músicas associadas à colheita e fazer piqueniques à sombra de oliveiras centenárias ou milenares.
Mas ao longo dos anos a alegria da colheita tem sido substituída por medo e apreensão. Com a expansão de colonatos israelitas na Cisjordânia e o aumento das restrições impostas pelo Exército, a apanha da azeitona tornou-se numa actividade perigosa. Cada ano, há um aumento de ataques de colonos que agridem palestinianos, queimam olivais, cortam oliveiras ou roubam azeitonas. Apesar das ameaças, a colheita continua.
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A oliveira viva há milhares de anos
Há milhares de anos que a oliveira de Salah dá frutos. Uma equipa de investigadores italianos e japoneses visitaram Walaja em 2010 para estudar a oliveira. Apesar de ser difícil precisar a idade das árvores, estimaram que terá entre quatro a cinco mil anos, uma das oliveiras mais antigas de que há registo.
Em Walaja, é conhecida como “a oliveira Badawi”, assim chamada em homenagem ao místico sufi do século XIII Ahmad al-Badawi, que, segundo dizem os habitantes, costumava meditar debaixo da oliveira.
Salah tem 51 anos. Sentado à sombra da árvore Badawi, parece-se um pouco com o místico que dá nome à oliveira, com a sua longa barba, vagar nos gestos e um olhar contemplativo. Também ele criou um altar junto à árvore milenar. É lá que passa os seus dias, a cuidar da sua horta com o seu companheiro, o gato Sunbul.
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“Esta árvore é sagrada. É uma bênção”, diz Salah. “Já nos alimenta há milhares de anos, e vai continuar a alimentar-nos durante muitos mais.” Quando o visitámos, estendeu a palma da mão para nos dar uma romã que abriu cuidadosamente ao meio, e, antes de partirmos, ofereceu-nos ramos de sálvia e de menta do seu quintal.
Desde 2009 que Salah recebe meio salário da Autoridade Palestiniana, cerca de 250 euros por mês. Oficialmente, foi contratado como agricultor, mas toda a gente o conhece como o “guardião da oliveira”.
Poderia ser um trabalho idílico, este o de cuidar de um ser tão antigo, tão profundamente enraizado na terra, vivo antes de Jesus ter nascido, antes mesmo de todas as religiões abraâmicas. Mas Walaja está cercada pela barreira de separação que Israel começou a erguer há duas décadas, e rodeada de colonatos israelitas, que, apesar de serem considerados ilegais segundo a lei internacional, continuam em expansão.
“Antes de erguerem estas barreiras esta zona estava cheia de oliveiras antigas. Agora vivemos numa prisão”, lamenta Salah, enquanto aponta para a cerca electrificada que separa a sua aldeia de terrenos apropriados por Israel.
Em 1948, durante a nakba (a “catástrofe” palestiniana), a família de Salah — como cerca de dois terços da população da Palestina — foi expulsa das suas terras a leste de Jerusalém durante o processo violento da criação do Estado de Israel. Centenas de milhares de refugiados palestinianos procuraram abrigo em Gaza, na Cisjordânia e países vizinhos como a Jordânia, o Líbano e a Síria. Alguns dos habitantes de Walaja encontraram refúgio nos terrenos agrícolas a sul da aldeia.
Impedidos de regressar às suas terras pelas autoridades israelitas, construíram uma nova aldeia no outro lado do vale que separa a Walaja antiga, destruída nos terrenos apropriados por Israel, da nova Walaja a sul, no território então anexado pela Jordânia. Desde 1967, quando Israel ocupou o que restava do território palestiniano, que Walaja tem perdido cada vez mais terra, apropriada para a criação de colonatos israelitas e isolada por muros e cercas electrificadas.
Da terra que cultiva, junto à oliveira que assistiu à catástrofe palestiniana, Salah consegue ver os terrenos que faziam parte da sua aldeia, tornados inacessíveis pela barreira de separação erguida por Israel. Os palestinianos chamam-lhe “muro do apartheid”, para os israelitas é uma “barreira de segurança”. Foi considerada ilegal pelo Tribunal Internacional de Justiça, por ser construída em território ocupado, apropriando cerca de 18.000 hectares de terrenos palestinianos, maioritariamente olivais, e restringindo o acesso a recursos e o movimento dos palestinianos na Cisjordânia.
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Os palestinianos mortos nos olivais
Seguindo a barreira de separação electrificada junto ao terreno de Salah, até mais a norte, onde se transforma num muro de betão de nove metros, passando pelas centenas de quilómetros de arame farpado, torres de vigia e valas construídas para segregar a Cisjordânia, chegamos à aldeia de Faqqua, perto de Jenin, rodeada de oliveiras que foram testemunhas de uma outra tragédia.
Na manhã de 17 de Outubro, Hanan Abu Salameh estava a apanhar azeitonas nos seus terrenos perto do muro com o marido, Hussam, e o filho, Fares, quando um veículo militar parou junto ao olival e soldados israelitas abriram fogo.
“Tirei o meu chapéu e comecei a acenar, a pedir que parassem, mas continuaram a disparar”, conta Hussam. Hanan caiu quando uma bala a atingiu no peito. A família correu para a acudir.
“Mesmo quando já tinham atingido a minha mãe e estávamos a tentar levá-la para o carro e chamar uma ambulância, os soldados continuaram a disparar”, conta Fares, que viu a mãe ser morta no olival que há muitas gerações pertence à sua família. Conta que o veículo militar se aproximou do terreno horas antes do ataque. “[Os soldados israelitas] estiveram a ver-nos a colher azeitonas durante duas horas antes de começarem a disparar”, diz.
Hanan tinha 59 anos, sete filhos e 14 netos. Quando pedimos a Hussam que descreva a sua companheira, ele hesita. “A Hanan era… tudo.” E as lágrimas correm-lhe pelo rosto. “Estava sempre comigo, dia e noite. Era o meu braço direito. Sem ela não sou capaz de fazer nada.”
O Exército israelita não respondeu às perguntas do PÚBLICO sobre a morte de Hanan. Mas não é a primeira vez que uma palestiniana é morta nos olivais. No ano passado, Bilal Saleh, um agricultor da aldeia de As-Sawiya, na região de Nablus, foi morto por um colono israelita, enquanto apanhava azeitonas nos terrenos que herdou da família. O suspeito foi detido e libertado poucos dias depois. O processo foi arquivado.
A família Abu Salameh não tem dúvidas de que, tal como o colono que matou Bilal, os soldados que atacaram Hanan não vão ser levados a tribunal. “Justiça? Que justiça?”, perguntam. “Vemos todos os dias o que acontece em Gaza, matam com total impunidade. O que querem é ficar com a terra, e expulsar-nos”, diz Hussam.
Segundo o grupo de direitos humanos israelita Yesh Din, a esmagadora maioria das queixas contra soldados e colonos israelitas que atacam palestinianos nunca chegam a ser investigadas, e quase todas as investigações são arquivadas sem que qualquer acusação seja feita.
Organizações de direitos humanos e agências da ONU documentaram a forma como décadas de impunidade estão a levar a níveis sem precedentes de abusos e devastação perpetrados pelas forças israelitas.
Num relatório publicado em Outubro, Francesca Albanese, relatora especial das Nações Unidas nos territórios palestinianos ocupados, acusa as autoridades israelitas de cometerem genocídio com o objectivo de “colonizar as terras palestinianas e delas retirar o maior número possível de palestinianos”. O relatório alerta para a devastação e violência que se estão a espalhar para além de Gaza, com as forças israelitas e colonos violentos “a reforçar padrões de limpeza étnica e apartheid na Cisjordânia”.
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Intensificar de ataques
Nos primeiros dias da colheita em Sebastia, perto de Nablus, uma vila palestiniana conhecida pelos vestígios arqueológicos que indicam ser um dos locais mais antigos continuamente habitados na Cisjordânia, Ahmad Ghazal, um agricultor de 72 anos, estava a colher azeitonas dos seus olivais próximos do colonato israelita de Shavei Shomron, construído em terras apropriadas de aldeias palestinianas, quando foi cercado por uma dúzia de colonos. “Atacaram-me com spray de pimenta”, contou um dia depois do ataque.
“Esta terra é de oliveiras. São a nossa vida.” Sem conseguir aceder aos seus olivais, Ahmad veio a morrer pouco depois, no dia 10 de Novembro, de complicações cardiovasculares que a família diz terem sido causadas pelo ataque, ainda que indirectamente. “O meu pai viveu os seus últimos dias em grande ansiedade, preocupado com a terra”, conta o filho, Rafiq Ghazal.
Segundo dados do Gabinete das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários, desde o início de Outubro já foram registados mais de 260 ataques de colonos israelitas durante a colheita que feriram pelo menos 68 palestinianos. Mais de 3100 árvores, maioritariamente oliveiras, foram queimadas ou cortadas, e sacos de azeitonas e equipamento agrícola foram roubados por colonos. Especialistas das Nações Unidas alertaram que este ano os palestinianos estão a enfrentar “a colheita de azeitonas mais perigosa de sempre”.
“Os colonos atacam com protecção das Forças Armadas israelitas para ficar com mais terras e impedir aos palestinianos o acesso aos seus terrenos e recursos”, diz Abeer Butmeh, engenheira ambiental e coordenadora da Pengon, uma rede de ONG ambientais palestinianas.
Para Abeer, o problema não é só a violência dos colonos e do Exército que aumenta a cada ano, mas também as restrições impostas pelas autoridades israelitas, e a contínua apropriação de terras palestinianas. Este ano, mais de 1200 hectares de terras palestinianas foram declaradas “terras estatais” pelo Governo israelita, um novo recorde.
“Desde o início da guerra em Gaza que muitos agricultores deixaram de conseguir aceder aos olivais [na Cisjordânia]. Foram impostas muitas restrições de acesso a terrenos próximos de colonatos, junto às estradas usadas pelos colonos e perto da barreira de separação”, explica Abeer.
No ano passado, mais de 9600 hectares de olivais na Cisjordânia ficaram por colher devido às restrições de movimento impostas pelo Exército israelita durante a época da colheita, o que causou perdas de cerca de dez milhões de dólares aos agricultores palestinianos, de acordo com dados das Nações Unidas.
Este ano, o Exército concedeu algumas autorizações para a colheita de olivais situados a 200 metros dos limites dos colonatos israelitas e da barreira de separação, o que, no entanto, não garante nem acesso, nem segurança aos palestinianos que tentam apanhar azeitonas nos seus terrenos. A família Abu Salameh tinha autorização do Exército israelita para colher azeitonas em Faqqua, e estava a mais de 250 metros do muro de separação, quando foi atacada pelos soldados israelitas que mataram Hanan.
De árvore da paz a arma de guerra
Em Qusra, na região de Nablus, o Exército israelita impediu que os palestinianos se aproximassem dos olivais junto do colonato israelita de Migdalim, construído em terras palestinianas apropriadas. No dia 29 de Outubro, nem a presença de uma delegação de deputados europeus inibiu os soldados israelitas de usarem a força contra camponeses desarmados que só queriam colher azeitonas nos seus próprios terrenos.
Enquanto os soldados disparavam gás lacrimogéneo e granadas de atordoamento, palestinianos, deputados europeus e jornalistas com coletes à prova de bala corriam pelos olivais, tornados campos de batalha.
“A oliveira é considerada a árvore da paz, mas estão a torná-la uma arma de guerra”, diz Ameed Aldasouqi, um agricultor da aldeia de Burqa, na região de Nablus, que também foi impedido de aceder aos seus olivais pelo Exército israelita.
As oliveiras ocupam um lugar especial tanto no cristianismo, como no judaísmo e no islão; são citadas nos livros sagrados das três religiões como símbolos de paz e como uma bênção. No Génesis, uma pomba regressa a Noé com um ramo de oliveira para anunciar o regresso da vida à terra depois do dilúvio.
Mas este símbolo da paz tem sido sistematicamente atacado na Palestina. Em 2011, a Autoridade Palestiniana calculou que cerca de um milhão de oliveiras foram arrancadas, queimadas ou cortadas por colonos e pelo Exército israelita nos territórios ocupados. No último ano, com a devastação maciça da terra agrícola na Faixa de Gaza, estima-se que 75% dos olivais de Gaza tenham sido destruídos em bombardeamentos ou arrasados por tanques israelitas.
Para Ameed, a guerra que Israel declarou às oliveiras é simbólica: “Estas árvores são prova da nossa presença aqui. São um símbolo da luta palestiniana, da nossa perseverança.” Os ataques às oliveiras são ataques à existência palestiniana. “Os colonos estão a usar cada vez mais força para nos expulsar. Mas aqui ficaremos, enraizados como as nossas oliveiras.”
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Enraizados como oliveiras
A oliveira não é apenas uma importante fonte de rendimento. É vista como um dos símbolos mais evocativos da resiliência palestiniana e de uma ligação ancestral à terra. “Para os palestinianos, a oliveira significa força. É uma árvore resistente que vive muitos anos e sobrevive em condições difíceis”, explica Abeer.
Os dias da colheita da azeitona na sua aldeia perto de Belém, Battir, são das memórias mais preciosas que Abeer tem da infância. Foi durante os passeios pelos olivais plantados nos terraços de Battir, reconhecidos como património mundial da UNESCO, que Abeer começou a sentir uma profunda ligação à terra.
“Temos muitas tradições associadas à colheita. Sempre foi uma altura muito importante para reunir a comunidade, com várias gerações a trabalhar em conjunto. Costumávamos cantar e ajudar-nos uns aos outros. Mas a ocupação está a apagar a beleza da colheita”, lamenta.
Battir está ameaçada pela recente aprovação de um colonato que irá ser construído em terrenos da aldeia, apropriando-se de uma parte das terras agrícolas declaradas património mundial.
“Já não cantamos durante a colheita. Com as ameaças dos colonos já não podemos ficar o dia todo nos nossos olivais a conviver. Agora temos de apanhar as azeitonas o mais rapidamente possível”, conta Abeer.
Sem as canções da colheita, o silêncio invade os olivais. É um silêncio de luto — pela perda, pela devastação e pelos mortos, sobretudo em Gaza, isolada do resto do território palestiniano, mas tão perto, e tão presente.
“As forças israelitas estão a cometer crimes contra a humanidade, mas também contra a terra, contra todas a formas de vida em Gaza”, diz Abeer, que está a trabalhar num estudo sobre o impacto dos bombardeamentos israelitas no solo e na água. Os dados enviados por colegas em Gaza indicam que a devastação causada está a chegar ao ponto de se tornar irreversível.
“Gaza já foi atacada muitas vezes, já sofreu várias catástrofes ambientais. Mas este ataque é o mais cruel. Excedeu todos os limites, violou todas as leis”, denuncia Abeer.
A catástrofe, porém, não derrotou Abeer, que ainda mantém esperança na persistência da vida. “Permaneceremos firmes como as raízes das nossas oliveiras”, promete. Mesmo quando são cortadas, as oliveiras têm a capacidade de voltar a crescer, desde que as raízes se mantenham vivas.
Em Walaja, à sombra da oliveira milenar que continua a dar frutos, Salah colhe a sua fé no futuro.
“Esta árvore sobreviveu todos estes anos a desastres naturais, a terramotos, a tempestades. Sobreviveu à destruição causada pelos homens. Os regimes caem, os governos mudam, mas esta oliveira permanece aqui, a desafiar os humanos”, lembra Salah. E promete: “Geração após geração, cuidamos desta terra, e desta oliveira. Os meus filhos vão cuidar desta árvore — vai continuar aqui para as gerações futuras.”
Fotografias por Mosab Shawer