EXPRESSO (10/8/2019)
Kifaya tinha 16 anos quando a família decidiu que devia morrer. O irmão mais velho amarrou-a à cadeira da cozinha, deu-lhe um copo de água e pediu-lhe para rezar a sua última oração antes de a esfaquear.
A jornalista Rana Husseini foi enviada para cobrir o assassinato num dia quente de Verão em Amã, a capital da Jordânia. Era 1994, e Rana estava no início da sua carreira quando se dirigiu a um dos bairros mas pobres da cidade para fazer uma reportagem que iria marcar o resto da sua vida.
No bairro conservador, no leste de Amã, os vizinhos sabiam porque é que Kifaya tinha sido assassinada: tinha engravidado fora do casamento e desonrado a família, e por isso, disseram a Rana, merecia morrer.
“Descobri que a Kifaya tinha sido violada pelo irmão mais novo. A família culpou-a pela violação e decidiu que a única forma de limpar a honra da família era acabar com a sua vida” diz Rana, sentada em frente ao seu computador na redação do Jordan Times, o jornal onde passou os últimos 25 anos a cobrir violência contra as mulheres.
“Quando comecei a escrever sobre os crimes de “honra” o assunto era tabu,” diz. “Como não se falava sobre a violência contra as mulheres não se sabia a dimensão do problema.”
Segundo a organização Human Rights Watch, todos os anos há entre 15 a 20 assassinatos de “honra” na Jordânia.
Entre as comunidades mais conservadoras, alguns homens crescem com a ideia de que defender a castidade das irmãs e filhas é uma obrigação social. Os chamados crimes de honra ocorrem quando os homens são pressionados pela comunidade a mostrar que defendem a “virtude” da família. A vida de uma filha, irmã ou sobrinha é considerada uma “mancha” na honra familiar que se deve “limpar” através do sangue.
Os familiares tentam esquecer o assassinato e a vítima o mais rapidamente possível. Rana tentou encontrar fotografias de Kifaya, mas descobriu que os familiares tinham queimado todos os registos dos seus 16 anos de vida.
“As famílias querem apagar tudo e nunca mais falar sobre o assunto. Querem que tudo o que resta delas desapareça.” Como Kifaya, muitas outras mulheres na Jordânia foram assassinadas, enterradas em sepulturas anónimas e esquecidas.
Acabar com o silêncio que rodeava a morte destas mulheres tornou-se a missão de Rana. “Quis contar a história delas ao mundo, dar-lhes uma voz, um rosto.”
Depois de ter cometido o crime, o irmão de Kifaya entregou-se à polícia, justificando o assassinato com a necessidade de defender a “honra” da família. Cumpriu uma pena de cinco anos por assassinar a irmã.
Rana apercebeu-se que o Código Penal jordano permitia que os crimes cometidos em nome da honra recebessem penas muito reduzidas. A sua indignação com a violência sofrida por estas mulheres, o silêncio e a injustiça do sistema jurídico motivaram-na a liderar uma campanha nacional contra os chamados crimes de “honra”.
“Toda a minha energia foi direcionada para defender os direitos das mulheres. Tornei-me numa ativista e acabei por receber vários prémios e viajar pelo mundo para defender esta causa”, conta.
“O sentimento de posse sobre as mulheres é universal”
Rana sublinha que os crimes de “honra” não são cometidos apenas entre comunidades muçulmanas. Acontecem no mundo inteiro, transcendendo cultura e religião. Entre as centenas de crimes de “honra” que Rana já cobriu nas últimas décadas, alguns foram cometidos por famílias cristãs.
As Nações Unidas estimam que cerca de 5 000 mulheres no mundo inteiro são assassinadas cada ano em nome da “honra”. Apesar de ocorrerem em vários países onde a maioria da população é muçulmana, são crimes que remontam a costumes tribais e práticas pré-islâmicas, e são condenados pelos líderes religiosos.
As leis usadas para reduzir as penas destes crimes não derivam da lei islâmica, mas do código Napoleónico, que desculpava os homens que assassinassem mulheres adúlteras.
O artigo 98 do Código Penal jordano permite que um juiz reduza a pena de crimes cometidos num estado de “fúria”. O artigo 340 atenua a culpa de quem assassinar a esposa se esta for apanhada a cometer adultério. Nos anos 90, Rana juntou-se a outras ativistas e começou uma campanha nacional para contra a violência de género. A advogada Asma Khader, hoje com mais de 40 anos de experiência a defender os direitos das mulheres na Jordânia, liderou os esforços para reformar as leis.
A redução de penas para crimes passionais faz parte dos códigos penais de muitos outros países, da América do Sul ao Médio Oriente, onde cabe aos juízes decidir se homens que agridem as companheiras adúlteras podem beneficiar de penas reduzidas.
Em Portugal, a “defesa da honra” já foi usada em tribunal para atenuar a culpa de maridos ciumentos. Num acórdão da Relação do Porto, a Bíblia e o Código Penal de 1886 foram citados para justificar um caso de violência doméstica em 2017. O juiz censurou a vítima e reduziu a pena do acusado por considerar o adultério da mulher um “gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem.”
“Há casos como estes no mundo inteiro”, defende Rana. Mulheres que são assassinadas ou agredidas “porque há homens a tentar controlá-las e castigá-las. O sentimento de posse sobre as mulheres é universal.”
Se na Europa as mulheres são assassinadas pelos companheiros ou ex-maridos, no Médio Oriente há mulheres a serem assassinadas pelos irmãos, pais ou tios, afirma Rana. “Mas a violência contra as mulheres acontece em todo o mundo.”
Rodeada de livros e condecorações, Asma senta-se no seu escritório em Amã. É uma das mais famosas advogadas na Jordânia, e a presidente da associação Sisterhood is Global, que dá apoio a vítimas de violência de género. Começou a trabalhar com crimes de honra nos anos 80.
“Qualquer mudança social demora bastante tempo”, diz, mas as conquistas têm sido progressivas. Este ano, o governo jordano abriu uma casa de abrigo para mulheres em risco de serem assassinadas pelas famílias. Há apenas alguns meses atrás, as mulheres em risco eram colocadas em prisão preventiva, enquanto nada acontecia aos seus familiares.
Asma sublinha a necessidade de se criar um sistema nacional para registar os crimes cometidos em nome da “honra”. E acima de tudo, de se registar o nome de cada mulher assassinada e não se deixar que seja esquecida.
As conquistas das feministas jordanas
Esraa Kadair tinha a mesma idade de Kifaya quando decidiu organizar o seu primeiro protesto contra os crimes de “honra”.
Em 2016, cinco mulheres foram assassinadas na mesma semana na Jordânia. Esraa disse basta. Começou uma campanha contra os crimes de “honra” nas redes sociais e organizou os seus colegas na escola. Dezenas de jovens juntaram-se em frente ao parlamento jordano em Fevereiro de 2017 com cartazes a pedir leis mais rígidas contra os crimes de honra e a violência de género.
Seis meses mais tarde, depois de mais de duas décadas de campanhas contra a violência de género lideradas por ativistas e organizações não-governamentais, o parlamento jordano aprovou uma série de reformas para acabar com os crimes de “honra”.
O artigo 98, usado tantas vezes em tribunal para dar reduzir as penas de crimes cometidos contra as mulheres, foi emendado para nunca mais justificar assassinatos em defesa da “honra”.
Para Esraa, que começou este ano a estudar direito para poder defender os direitos das mulheres, não foi suficiente. “Ainda temos que lutar tanto,” diz. Mas Rana mantém-se otimista. “Os nossos esforços contribuíram para mudar a mentalidade na Jordânia, para emendar leis discriminatórias e para abrir casas de abrigo para mulheres em risco de ser assassinadas. As mulheres ainda não podem passar a nacionalidade aos filhos, e os casamentos precoces ainda são um problema”, diz. Mas vão continuar a lutar.