Marta Vidal

3/1/2025

O artigo “A liberdade lá em cima” sobre observadores de aves em Gaza, publicado pelo Expresso na primavera de 2023, recebeu o prémio Gazeta de Imprensa. Discurso na cerimónia dos prémios em Lisboa, no dia 3 de Janeiro de 2025. Dedicado ao Fuad Abu Khammash, fotojornalista morto por Israel, e a todas as jornalistas palestinianas – as que foram assassinadas, presas, ameaçadas, e as que, apesar dos riscos, do horror, da perda e da angústia, continuam a transmitir ao vivo a aniquilação de Gaza.
O vestido tem os nomes de 140 jornalistas mortos por Israel em Gaza, bordado com um padrão tradicional de Gaza pela artista palestiniana Rita Alsalaq.

Na primavera de 2023 estive em Gaza para encontrar palestinianos que observam aves e sonham com liberdade na maior prisão a céu aberto – as pessoas que tentam cuidar da vida mesmo quando rodeadas de morte e devastação. 

A Gaza que eu visitei na primavera foi completamente destruída por bombardeamentos israelitas, enterrada sob mais de 40 milhões de toneladas de escombros. 

As forças israelitas bombardearam hospitais, ambulâncias, universidades, escolas, mesquitas e igrejas. Dispararam sobre palestinianos que esperavam em filas por rações de farinha e sobre pessoas que acenavam bandeiras brancas. Arrasaram terras agrícolas e olivais. Bombardearam e incendiaram tendas, queimando vivas pessoas deslocadas em campos de refugiados. Mataram mais de 17 mil crianças e fizeram outras 35 mil orfãs. Despiram e vendaram homens. Prenderam milhares e milhares sem nenhuma acusação. Violaram e torturaram prisioneiros. Devolveram corpos em decomposição. 

Os ataques israelitas quebraram todos os recordes – do maior número de jornalistas, médicos e trabalhadores humanitários mortos, do maior número de crianças amputadas, da maior quantidade de explosivos lançada num território tão densamente povoado. 

Nenhuma das pessoas que conheci em Gaza foi poupada à devastação e à brutalidade que Israel inflige aos palestinianos. Perderam filhos, irmãos e amigos, as casas, o trabalho, tudo o que tinham. As pessoas que me receberam com imensa generosidade, com grandes banquetes de comida deliciosa, neste momento passam fome, deslocadas pela nona ou décima vez à procura de um lugar seguro, enquanto Israel bombardeia todos os abrigos e impede a entrada de ajuda humanitária no território sitiado com o objectivo de esfomear a população.

Uma das pessoas que me acompanhou em Gaza, o meu amigo e colega, o fotojornalista Fuad Abu Khammash, foi morto a 10 de Janeiro, quando um míssil israelita atingiu a ambulância com que trabalhava como voluntário. Tinha 28 anos.

Pelo menos 193 das nossas colegas jornalistas foram mortas por Israel em Gaza nos últimos 14 meses, o maior massacre de jornalistas de que há registo. Trago escritos no corpo os nomes de apenas 140, os que foram identificados pelo Comité de Protecção dos Jornalistas. 

Quero dedicar este prémio ao Fuad, que foi morto por Israel antes de poder receber prémios, e a todas as jornalistas palestinianas – as que foram assassinadas, presas, ameaçadas, e as que, apesar dos riscos, do horror, da fome, da perda, da angústia, continuam a transmitir ao vivo a aniquilação de Gaza, dia após dia, massacre após massacre, para um mundo que assiste passivo à obliteração de um povo e de um território. 

Depois de mais de um ano de genocídio em Gaza, com mais de 45 mil palestinianos mortos, quase metade crianças, centenas de milhares de feridos, e milhares de corpos ainda por resgatar dos escombros, este governo, o presidente da república e a câmara municipal de Lisboa mantêm-se em silêncio. Pergunto: quantos mais palestinianos têm que ser mortos para dizerem basta? 

Enquanto Israel comete genocídio, infanticídio, ecocídio, domicídio, crimes contra todas as formas de vida na Palestina, o presidente da câmara de Lisboa, Carlos Moedas (aqui presente), expressou o seu “apoio incondicional” a Israel. Decidiu ceder o cinema S. Jorge para as celebrações da criação do Estado de Israel, e brindar com o embaixador, num momento em que os líderes israelitas são acusados de crimes de guerra e de crimes contra a humanidade.

O presidente da república, aqui presente, disse ao embaixador palestiniano, e cito, “que não deviam ter começado”. Senhor presidente, a guerra que Israel declarou ao povo palestiniano não começou a 7 de outubro de 2023. Nem em 1967, quando Israel ocupou o que restava do território palestiniano, nem mesmo em 1948, quando milícias sionistas expulsaram mais de metade da população palestiniana, e destruíram centenas de aldeias, vilas e cidades palestinianas para construir o estado de Israel nas ruínas. 

Começou como começam todos os projectos coloniais – com racismo, com ideias supremacistas de que um povo tem mais direito à terra e à vida do que outros, e com a desumanização e a espoliação da população indígena. 

O projecto colonial sionista continua a expandir-se, continuar a destruir, a matar e a expulsar palestinianos com o apoio dos governos ocidentais e com total impunidade, como faz há mais de sete décadas.

Este governo, o presidente da república, e o presidente da câmara municipal de Lisboa mantêm-se em silêncio. Recusaram-se a impor sanções a Israel, negaram o reconhecimento da Palestina, e continuam a apoiar o governo israelita enquanto comete genocídio, apartheid e limpeza étnica. São cúmplices nestes crimes. 

Queria terminar com algumas palavras das protagonistas da reportagem premiada. Antes desta cerimónia perguntei-lhes que mensagem gostariam de transmitir ao público. 

O professor de ciências ambientais Abdel Fattah Abd Rabou perdeu dois filhos: o Mohammed, que trabalhava como jornalista, e a Sumaya, que era trabalhadora humanitária, mortos por um bombardeamento israelita em Nuseirat. O professor disse apenas que envia “saudações do coração do sofrimento de Gaza.” A casa dele, em Jabalia, foi completamente destruída, assim como a universidade onde ensinava os alunos a preocupar-se com biodiversidade e o ambiente. 

As irmãs gémeas Sirdah foram expulsas pelo exército israelita da cidade de Gaza e estão deslocadas a sul, em Deir al-Balah. A associação com que trabalhavam a dar apoio a pessoas surdas, Atfaluna, foi destruída por soldados israelitas que tiraram fotografias, sorridentes, em frente ao edifício a arder. 

Mas apesar da devastação, da perda, do deslocamento, as irmãs continuam a observar aves. Disseram, cito: “A situação é catastrófica. A mensagem mais importante é que são civis, pessoas inocentes, que estão a ser alvo, que estão a ser mortas… precisamos urgentemente de comida e de medicamentos, e que esta guerra (genocídio) acabe imediatamente.”