Marta Vidal

VISÃO (11.11.2023)

Rodeado pelos destroços de um edifício bombardeado em Gaza, um homem coberto de pó segura uma bebé recém-nascida, resgatada dos escombros e embrulhada numa manta. “É muito pequena, só tem uns quatro ou cinco dias”, conta o fotógrafo palestiniano Mohammed Zaanoun, que presenciou o resgate. “A bebé estava junto à mãe quando a casa da família foi bombardeada. A mãe morreu, mas a menina foi resgatada viva. Foi uma das poucas sobreviventes do bombardeamento”, diz Mohammed, que fotografou a cena no dia 11 de outubro, na cidade de Gaza.

Desde então, muitas outras crianças já perderem os pais na Faixa de Gaza. “Não há lugar mais solitário no mundo do que junto da cama de uma criança ferida que já não tem família para cuidar dela”, escreveu o cirurgião britânico-palestiniano Ghassan Abu Sittah, que está a trabalhar no hospital Al-Shifa, o maior de Gaza. O número de crianças atingidas por bombardeamentos israelitas é tão avassalador que se criou uma nova designação no hospital onde Ghassan trabalha: “Criança ferida sem familiares sobreviventes.”

Segundo o Ministério da Saúde de Gaza, a ofensiva militar israelita já matou mais de onze mil palestinianos, quase metade crianças. Estes números, que aumentam todos os dias, só incluem os corpos identificados nos hospitais. Milhares estão ainda desaparecidos debaixo dos escombros das casas bombardeadas. A organização Save The Children avisou que o total de crianças palestinianas mortas em outubro já ultrapassa o das que perderam a vida nos conflitos no mundo inteiro, nos últimos quatro anos.

A 7 de outubro, o Hamas quebrou as barreiras que tornaram Gaza na “maior prisão a céu aberto” e lançou um ataque contra alvos militares e comunidades israelitas próximas da Faixa de Gaza. O grupo armado matou mais de 1 400 pessoas e raptou 242 incluíndo crianças, levando-as como reféns para Gaza. Desde então, Israel declarou guerra ao Hamas, bombardeando incessantemente o território sitiado, onde vivem 2,3 milhões de pessoas, sem nenhum lugar para onde fugir, e impôs um bloqueio total que impediu a entrada de água, alimentos e combustível. A guerra tem sido tão devastadora que o porta-voz da UNICEF, James Elder, disse que Gaza se tornou um “inferno” e um “cemitério para milhares de crianças”, uma expressão repetida pelo secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, em apelos ao cessar-fogo.

“Uma população inteira está sitiada e sob ataque; está a ser-lhe negado o acesso aos bens essenciais para a sobrevivência, enquanto casas, abrigos, hospitais e lugares de culto são bombardeados. É inaceitável”, declararam os representantes das principais agências da Organização das Nações Unidas (ONU), num comunicado conjunto publicado no domingo.

A declaração alerta para o elevado número de funcionários humanitários mortos, mais de 88 da UNRWA, a agência da ONU para os refugiados palestinianos, o mais alto alguma vez registado entre os trabalhadores das Nações Unidas. As agências e organizações humanitárias exigiram um cessar-fogo imediato e pediram a libertação de todos os reféns em Gaza, a proteção de civis e de infraestruturas essenciais e a entrada de ajuda urgente.

Mas os apelos de cessar-fogo têm sido ignorados. O primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, rejeitou pausas humanitárias “enquanto os reféns não forem libertados” e anunciou uma intensificação da ofensiva militar para destruir o Hamas.

Nomes escritos nos corpos

“Chegámos a um ponto em que o número de crianças mortas e desaparecidas é tão grande que os pais começaram a escrever os nomes dos filhos nas mãos e nos pés com canetas, para que possam ser identificadas”, conta Mohammed, que já viu vários nomes de crianças escritos a tinta negra em pequenos pés nas morgues de Gaza.

Como fotojornalista premiado internacionalmente, Mohammed cobriu todas as guerras e ofensivas israelitas dos últimos anos na Faixa de Gaza, mas garante que nunca assistiu a nada assim. “Estou a viver os piores dias da minha vida. A ver pessoas que conheço morrer à minha frente. Estou rodeado de morte, de medo, de destruição.” O mais difícil, diz, é fotografar crianças mortas ou feridas. “Sempre que tiro uma fotografia a uma criança, penso nos meus filhos. Imagino que poderiam ser eles debaixo dos destroços. É um sentimento absolutamente terrível; não o desejo a ninguém.”

A casa de Mohammed, no centro da cidade de Gaza, foi destruída por mísseis israelitas, e um dos seus quatro filhos ficou ferido. Quando Israel deu ordens para que a população do Norte de Gaza, mais de um milhão de pessoas, deixasse as suas casas e se dirigisse para sul, o fotojornalista, que já tinha perdido a casa num bombardeamento, partiu com a família para Rafah, perto da fronteira com o Egito.

Na viagem para sul, viu milhares de famílias a fazer o mesmo trajeto, algumas a pé, com os pertences que conseguiam carregar. Pelo caminho, ouviu explosões. No dia em que Mohammed fugiu do Norte de Gaza, dezenas de pessoas foram mortas em bombardeamentos junto à principal estrada que liga o Norte ao Sul, durante a viagem que Israel tinha ordenado. Entre os mortos estavam alguns familiares de Mohammed. 

A ordem para transferir quase metade da população da Faixa de Gaza em 24 horas foi considerada “impossível” pela ONU, que avisou que a mesma teria “consequências humanitárias devastadoras”. A Organização Mundial da Saúde disse que era “inviável” retirar pacientes dos hospitais no Norte de Gaza. Segundo dados das Nações Unidas, um milhão e meio de pessoas estão deslocadas na Faixa de Gaza, cerca de 70% da população. E nem mesmo no Sul, para onde o Exército israelita mandou que se dirigissem, os palestinianos estão seguros.

“Os mísseis israelitas continuam a atingir o Sul de Gaza”, diz Mohammed. Apesar de estar deslocado com a família e a enfrentar bombardeamentos intensos e um cerco total, continua a sair para as ruas todos os dias, para fotografar o que se passa à sua volta. Fotografa a destruição massiva, prédios de vários andares reduzidos a pó, bairros inteiros que foram apagados do mapa. De acordo com dados da ONU, pelo menos 45% da habitação em Gaza foi destruída ou danificada.

Mohammed fotografa os bombardeamentos que atingem zonas residenciais, campos de refugiados densamente povoados, áreas hospitalares, mesquitas, igrejas, padarias, ambulâncias e escolas. “Matam tudo e todos”, diz à VISÃO. “Civis, crianças, mulheres. Matam tudo o que mexe, tudo o que respira.” Também fotografa os milhares de deslocados que procuram desesperadamente um abrigo num território sitiado, onde nenhum lugar é seguro, e as longas filas de pessoas que esperam horas por um pouco de água ou pão.

Após os ataques do Hamas, Israel anunciou um “bloqueio total” da Faixa de Gaza, cortando o abastecimento de comida, água, eletricidade e combustível. “Estamos a lutar contra animais humanos”, afirmou o ministro da Defesa israelita, Yoav Gallant, ao anunciar o corte dos bens essenciais. Porém, mesmo antes da guerra, Gaza já era considerada “a maior prisão a céu aberto” do mundo.

Cavar com as mãos

A Faixa de Gaza está sob bloqueio militar desde 2007, quando o Hamas, que rejeita negociações com Israel e defende a luta armada, tomou controlo do território. Considerando-a uma entidade hostil, Israel fechou as fronteiras terrestres, aéreas e marítimas, limitando a circulação de pessoas e bens. Cercada pelo Exército israelita a norte, ocidente e oriente, resta a Gaza apenas a fronteira do Egito a sul, mas as autoridades egípcias raramente abrem a passagem a palestinianos.

Desde o início da guerra, pouco mais de mil pessoas, maioritariamente estrangeiros ou palestinianos com dupla nacionalidade e alguns feridos graves, puderam sair através da passagem de Rafah, no Sul de Gaza, e entrar no Egito. A ajuda humanitária que deveria entrar por este ponto não tem chegado à maioria dos palestinianos.

Só duas semanas depois do bloqueio total imposto por Israel é que começaram a entrar os primeiros camiões com ajuda humanitária, a partir do Egito. Segundo dados da ONU, apenas foi permitido o acesso de 569 camiões nas últimas semanas, quando antes da guerra eram necessários cerca de 500 camiões por dia para abastecer a população com comida, água, medicamentos e combustível. A ajuda humanitária que chegou ao território foi descrita por organizações internacionais como “uma gota de água” num oceano de desespero e privação.

Com acesso restrito a água potável, recorre-se à água do mar. As doenças causadas pelo consumo de água contaminada espalham-se rapidamente, e as crianças são particularmente vulneráveis. Sem combustível, medicamentos ou equipamento médico, os hospitais estão a fechar. À medida que se esgotam as reservas de combustível, deixa de haver eletricidade para manter incubadoras ligadas, e serviços de saúde essenciais deixam de funcionar. De acordo com o Ministério da Saúde de Gaza, mais de metade dos hospitais na Faixa de Gaza estão agora inoperacionais devido à falta de recursos ou por terem ficado danificados em bombardeamentos.

Ao ordenar o corte de eletricidade aos residentes de Gaza, o ministro da Energia israelita, Israel Katz, disse que “não há razão” para prestar assistência humanitária aos palestinianos até que as forças israelitas “eliminem” o Hamas. Quando a deputada palestiniana Aida Touma-Sliman tentou chamar a atenção para o sofrimento das crianças no Parlamento israelita, defendendo que nenhuma criança, israelita ou palestiniana, é culpada, foi recebida com os gritos da deputada Meirav Ben-Ari, do partido liberal Yesh Atid, que disse que as crianças de Gaza “trouxeram isto para si mesmas”. A desumanização dos palestinianos, descritos como “animais humanos,” tem sido acompanhada por declarações de oficiais israelitas de que Gaza será “esmagada” e vai tornar-se um “inferno” em retaliação ao ataque do Hamas.

O escalar da retórica de desumanização e a brutalidade da agressão contra palestinianos levaram centenas de investigadores e especialistas a avisar que a ofensiva israelita em Gaza pode ser considerada genocídio. Segundo Raz Segal, professor de Estudos do Holocausto e Genocídio na Universidade de Stockton, nos EUA, bombardeamentos indiscriminados de uma população civil encurralada, a destruição de todos os meios de subsistência e a deslocação forçada de mais de um milhão de pessoas mostram um “caso exemplar de genocídio a desenrolar-se à nossa frente”.

“A morte tornou-se algo comum”, diz Mohammed. “Vemos dezenas, centenas de pessoas a morrerem num só bombardeamento. E o mundo assiste. Vê-nos na televisão e nos telemóveis a ser massacrados. É como se fôssemos insignificantes, como se as nossas vidas não importassem.” Sem poder contar com apoio internacional e sentindo-se abandonados, os palestinianos sobrevivem ajudando-se uns aos outros. Salvam-se uns aos outros, cavando os destroços das casas com as próprias mãos para resgatar familiares, amigos e vizinhos. “A maioria das pessoas deslocadas onde eu estou tenta dividir e partilhar a pouca água e comida que há. É assim que sobrevivemos”, conta o fotojornalista.

A sobrevivência e o trauma são herdados de geração em geração. Gaza estava ligada ao resto da Palestina histórica antes da criação do Estado de Israel, em 1948. Esse ano é conhecido pelos palestinianos como a “Nakba”, a catástrofe, o processo violento que resultou no deslocamento de quase dois terços da população palestiniana e na destruição de centenas de aldeias. Cerca de 200 mil palestinianos fugiram ou foram expulsos para Gaza, fazendo triplicar a população do território. Hoje, a maioria dos habitantes da Faixa de Gaza é descendente dos refugiados que foram impedidos por Israel de voltar para as suas terras, em violação da lei internacional. Muitos vivem em campos de refugiados sobrelotados, que têm sido bombardeados por Israel.

Não há sítios seguros

Fuad Khammash tem trabalhado com uma ambulância a documentar o horror das últimas semanas. “Não é possível”, diz à VISÃO. “Não é possível descrever o que estamos a viver, o que estamos a ver todos os dias na ambulância.”

“Logo no primeiro dia, assim que abri a porta da ambulância, vi pessoas que conhecia, amigos e familiares que tinham sido atingidos por um bombardeamento”, conta. “Vi tudo cinzento, os corpos estavam cinzentos do pó dos destroços. Foi um choque. Tinha estado com eles, com os meus amigos e familiares pouco tempo antes. Tinha-me despedido deles, e agora estavam ali, entre os destroços. Estavam lá muitas crianças e mulheres feridas. Ao todo, morreram 23 pessoas num só bombardeamento.”

Também Mohammed já teve de continuar a trabalhar quando confrontado com o sofrimento de quem lhe é próximo. No dia 26 de outubro, foi um de muitos jornalistas e fotógrafos presentes no funeral da família do jornalista da Al Jazeera Wael al-Dahdouh, seu colega.

A família de Wael vivia na cidade de Gaza. Quando Israel anunciou a ordem de evacuação, procurou abrigo na casa de familiares no campo de refugiados de Nuseirat, no Sul de Gaza, uma zona que deveria ser considerada segura. Contudo, a casa, que se tinha tornado um abrigo para dezenas de pessoas, foi atingida por um bombardeamento, que matou três gerações da família al-Dahdouh: a esposa de Wael, o filho adolescente, a filha, de 7 anos, e o neto, um bebé com um ano e meio.

Entre as fotografias mais dolorosas que Mohammed tirou no dia do funeral está um retrato de Batoul al-Dahdouh, a filha mais velha do jornalista, com cortes profundos e sangue no rosto. O sofrimento capturado na fotografia não vem das feridas, mas da dor de uma mãe que tem de se despedir do seu filho, morto no bombardeamento. Batoul chora abraçada ao corpo do seu bebé, Adam, embrulhado numa mortalha branca. “Ela esteve cinco anos a tentar engravidar”, conta Mohammed. “Só tinha aquele filho.”

Poucos dias depois de enterrar a companheira, os filhos e o neto, Wael voltou para a frente das câmaras, para continuar a transmitir ao vivo a situação em Gaza. Mas dezenas de outros jornalistas não vão nunca mais poder regressar aos seus lugares de trabalho. De acordo com o Comité para a Proteção dos Jornalistas, desde o início da guerra já morreram pelo menos 39 jornalistas palestinianos, quatro jornalistas israelitas e um jornalista libanês.

Além dos bombardeamentos e da falta de bens essenciais, os profissionais dos média em Gaza debatem-se igualmente com cortes das telecomunicações e internet. Desde 7 de outubro, houve três cortes totais das comunicações, denunciados por organizações de defesa dos Direitos Humanos, como a Amnistia Internacional, que considerou que podiam estar a ser usados para ocultar atrocidades.

Resgates do desespero

Para Fuad Khammash, o problema não é só não poder comunicar com o exterior e mostrar o que está a acontecer. “Sem rede nos telemóveis, não sabemos aonde temos de ir socorrer as pessoas, porque não há formas de comunicar”, explica. “Temos de esperar que elas venham ao hospital para trazer os feridos, para podermos saber onde temos de ir resgatar as vítimas de bombardeamentos.”

Os dias em que o apagão das comunicações é total são terríveis, afirma. “As pessoas vêm de longe, percorrem longas distâncias de bicicleta ou a pé, para nos dizer que houve um bombardeamento e que é preciso ajudar os feridos, ou para dizer que uma mulher está a dar à luz”, relata. Mas Fuad diz que, apesar de todas as dificuldades e riscos, vai continuar a prestar auxílio e a documentar a situação como pode. “O que me dá força é saber que estou a apoiar as pessoas e a mostrar o que está a acontecer, que estou a expor estes crimes”, garante à VISÃO.

“Quando nos veem, as pessoas sabem que viemos para as resgatar e sentem-se mais seguras; sentem que há alguém que se importa com elas e que as vai ajudar”, diz Fuad. Por isso, assegura, faz todos os esforços para se mostrar firme. “Sinto que tenho de manter a compostura, que não posso mostrar fraqueza, porque tenho de fazer com que as pessoas sintam que estou com elas, que não estão sozinhas.”

Não obstante o sofrimento que o rodeia, ainda há vislumbres de esperança. Lembra-se do dia em que resgatou dos destroços uma menina. “A ambulância foi chamada a um abrigo que tinha sido bombardeado e que estava cheio de crianças pequenas. Vi uma menina presa debaixo dos escombros, mas tentei brincar com ela e acalmá-la, abraçá-la. A situação era muito difícil, mas consegui que uma criança que tinha acabado de ser resgatada dos destroços começasse a rir.”

As crianças também o ajudam, também são capazes de o resgatar do desespero. “Um dia, fomos a um abrigo para dar apoio psicológico às crianças que estavam lá, para brincar com elas. Depois de passarem umas horas, com os sorrisos e a inocência delas, senti que era eu que estava a receber apoio. Senti que ainda havia vida à minha volta, que ainda havia esperança.”

Para Mohammed, cada dia e cada mensagem que envia podem ser os últimos. “Hoje, estou vivo e falo convosco. Amanhã, não sei. Para já, estamos só a tentar sobreviver. É como se toda esta dor tivesse de ficar dormente; temos de nos focar na sobrevivência.” Mas Mohammed teme o que virá depois. Mesmo que a guerra acabe em breve, a perda, a devastação e o trauma vão permanecer durante gerações. “Vai haver consequências terríveis para as nossas crianças. Para todos os aspectos das nossas vidas.”

Fotografias: Mohammed Zaanoun e Fuad Khammash

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