EXPRESSO (19/12/2023)
“Estão a bombardear aqui perto,” diz Mohammed (*), a voz abafada pelo barulho de explosões numa mensagem de áudio enviada do Hospital al-Awda, em Jabalia, uma zona que tem sido alvo de intensos bombardeamentos. Cercado pelo exército israelita desde o dia 5 de dezembro, o hospital era um dos poucos ainda a funcionar no norte de Gaza.
“A situação é horrível. Há um cerco total ao hospital, ninguém consegue sair,” contou Mohammed, funcionário do hospital, em mensagens de áudio enviadas na semana passada em que descreve o medo e desespero vividos nos últimos dias. “Snipers mataram uma mulher que veio com a cunhada para os serviços de maternidade. Mataram dois dos nossos colegas, um enfermeiro e um funcionário de limpeza,” diz.
“Já não temos água potável porque o exército bombardeou os nossos tanques de água,” contou Mohammed. “Não temos comida suficiente, só temos um pouco de arroz e de pão, que tentamos dividir entre todos. Só comemos uma refeição por dia,” disse. Encurralados no edifício sem água, comida ou medicamentos suficientes, Mohammed diz que os médicos, funcionários, pacientes e familiares dormem nos corredores e rastejam pelo chão do hospital para evitarem serem atingidos pelas janelas.
“Temos 98 funcionários presos dentro do hospital, 36 pacientes, a maioria deles crianças e mulheres, vários casos graves, e 38 familiares de pacientes. Há também entre 60 a 80 familiares dos funcionários,” disse Ahmad Muhanna, diretor do Hospital al-Awda, em mensagens de voz enviadas pelo WhatsApp.
No domingo, o exército israelita invadiu o Hospital al-Awda e prendeu funcionários e o diretor, segundo um comunicado publicado pela Associação que gere o hospital. Alguns foram libertados algumas horas depois, mas segundo a associação pelo menos doze continuam detidos. O porta-voz do ministério de saúde em Gaza, Ashraf al-Qudra, disse à imprensa árabe que o exército israelita tinha tornado o hospital “num quartel militar.”
“Nenhum lugar e ninguém está seguro em Gaza, incluíndo trabalhadores humanitários e profissionais de saúde. Mais de 130 funcionários das Nações Unidas foram mortos, incluíndo a nossa colega Dima Alhaj,” disse o diretor-geral da Organização Mundial de Saúde Tedros Adhanom Ghebreyesus numa conferência de imprensa em Genebra no dia 15 de dezembro. “Grupos humanitários que iam entregar ajuda ou transferir pacientes foram atacados, detidos, interrogados e atrasados. É completamente inaceitável que os profissionais de saúde também tenham sido detidos,” disse.
Desde que o Hamas lançou um ataque a Israel a 7 de outubro que matou cerca de 1200 pessoas e levou 240 reféns, bombardeamentos israelitas por terra, mar e ar já mataram mais de 19 mil palestinianos em Gaza, segundo o ministério de saúde palestiniano. De acordo com dados das Nações Unidas, cerca de 70% das vítimas palestinianas são crianças e mulheres.
Estes números, que aumentam todos os dias, só incluem os corpos identificados nos hospitais. Milhares estão ainda desaparecidos debaixo dos escombros de edifícios bombardeados. Com o colapso dos serviços de saúde em Gaza, as autoridades não têm consigo atualizar os números dos mortos, uma vez que os hospitais deixaram de ter capacidade de os contar.
“Uma população inteira está sitiada e sob ataque, está a ser-lhe negado o acesso aos bens essenciais para a sobrevivência, enquanto casas, abrigos, hospitais e lugares de culto são bombardeados. É inaceitável”, declararam os representantes das principais agências da Organização das Nações Unidas num comunicado conjunto publicado o mês passado.
Os bombardeamentos israelitas levaram ao deslocamento forçado de 1.9 milhões de pessoas, o que representa cerca de 80% da população de Gaza, de acordo com as Nações Unidas. Nos abrigos sobrelotados onde centenas de pessoas partilham a mesma casa de banho, e muitas estão a viver sem água limpa e sem saneamento, as doenças espalham-se rapidamente. A OMS tem registado um número alarmante de casos de meningite, varicela, icterícia, disenteria e infecções respiratórias. Os bombardeamentos israelitas já feriram mais de 50 mil pessoas, mas à medida que o número de feridos e doentes aumenta, a capacidade de os tratar nos hospitais é cada vez menor.
Devido aos danos causados pelos bombardeamentos e à falta de combustível, electricidade, água e medicamentos, apenas 8 dos 36 hospitais na Faixa de Gaza estão a funcionar parcialmente, segundo dados das Nações Unidas. Desde 7 de Outubro, já foram registados pelo menos 364 ataques aos serviços de saúde. De acordo com o ministério de saúde de Gaza, os ataques já mataram mais de 300 profissionais de saúde.
No mês passado, o exército israelita invadiu o Hospital al-Shifa e o Hospital Indonésio, os maiores de Gaza, ordenando que o pessoal médico e pacientes abandonassem as instalações hospitalares, deixando para trás doentes em estado crítico e bebés prematuros. Este mês, as forças israelitas invadiram o Hospital Kamal Adwan depois de um cerco de vários dias e de bombardeamentos. O exército israelita prendeu pessoal médico e os diretores dos hospitais, que estão com paradeiro desconhecido até hoje.
O diretor-geral da OMS condenou o ataque ao Hospital Kamal Adwan, que causou a morte de pelo menos 8 pacientes, incluíndo uma criança de 9 anos. “O sistema de saúde de Gaza já estava de rastos e a perda de outro hospital, mesmo que minimamente funcional, é um duro golpe. Os ataques a hospitais, profissionais de saúde e pacientes têm que acabar,” disse nas redes sociais, defendendo a necessidade de um cessar-fogo imediato.
No domingo, um tanque israelita atingiu a maternidade do Hospital Nasser em Khan Yunis, no sul de Gaza, que matou Dina Abu Mehsen, uma menina de 12 anos. A organização não-governamental Defense for Children International publicou uma entrevista com Dina feita em novembro. No vídeo publicado, a criança conta que perdeu os pais, dois irmãos e uma das pernas num bombardeamento israelita, pede que alguém a leve para fora de Gaza para poder arranjar uma perna prostética e poder “andar como as outras pessoas e brincar” e pede pelo fim da guerra.
A organização de direitos humanos Human Rights Watch afirmou que os repetidos ataques a hospitais e ambulâncias em Gaza devem ser investigados como crimes de guerra. As autoridades israelitas têm justificado os ataques alegando que o Hamas tem túneis debaixo dos hospitais que são usados como “centros de comando” onde o grupo armado esconde armas, e que mísseis foram lançados nas proximidades de instalações médicas. As acusações foram veementemente negadas pelas autoridades de saúde de Gaza.
Organizações de direitos humanos dizem que as afirmações das autoridades israelitas não foram comprovadas, e que nenhuma prova apresentada pode justificar ataques a hospitais e ambulâncias, que deveriam ser protegidos pelo direito humanitário internacional. Contactada pelo Expresso, a autoridade militar responsável pelas operações israelitas nos territórios palestinianos não respondeu a um pedido de resposta a tempo de publicação.
Se o bloqueio total a Gaza imposto por Israel em outubro já tinha criado uma catastrófica escassez de água, alimentos, medicamentos, combustível e equipamento médico, Ahmad Muhanna disse que a situação se tornou ainda mais desesperada quando os tanques israelitas cercaram o Hospital al-Awda. “Falta tudo. Não temos oxigénio, não temos equipamento médico,” disse numa mensagem de voz enviada uma semana antes de ser detido pelo exército israelita. As operações são feitas sem anestesia, e não há antibióticos nem medicamentos essenciais.
Antes do hospital ser cercado, já tinha sido atingido por um bombardeamento israelita no dia 21 de novembro que matou três médicos: Mahmoud Abu Nujaila, Ahmad Al Sahar, e Ziad Al-Tatari, dois deles membros da organização humanitária Médicos sem Fronteiras (MSF).
“Os ataques a instalações médicas são uma séria violação da lei humanitária internacional, mas têm-se tornado sistemáticos nas últimas semanas,” denunciou a MSF num comunicado onde afirma que os funcionários médicos têm sido alvos de repetidos ataques em Gaza, e estão a enfrentar “dificuldades extremas em prestar os poucos cuidados de saúde que conseguem.” No início deste mês, os Médicos sem Fronteiras denunciaram um outro “ataque deliberado” contra veículos da organização que mataram duas pessoas durante uma evacuação.
Um mês antes de ser morto por um bombardeamento israelita enquanto trabalhava no Hospital al-Awda, o médico Mahmoud Abu Nujaila escreveu no quadro branco onde normalmente se planeiam cirurgias: “Quem ficar até ao fim vai contar a história. Fizemos o que pudemos. Lembrem-se de nós.”
Na última mensagem enviada do hospital, dois dias antes do exército prender os funcionários, Mohammed escreveu que apesar de todas as pressões, das carências, do medo e dos bombardeamentos, os médicos no hospital continuam a tentar salvar vidas. “Estamos no décimo primeiro dia do cerco, mas continuamos determinados a agarrar-nos à vida,” escreveu. Nas suas últimas palavras cita o poeta palestiniano Mahmoud Darwish: “Amamos a vida quando podemos.” E se tivermos que morrer, diz, que seja a fazer o bem, a proteger a vida.
Fotografia de Mohammed Zaanoun / Activestills