PÚBLICO (19/9/2025)
Enquanto vários países anunciam o reconhecimento do Estado da Palestina na Assembleia Geral da ONU, na Cisjordânia ocupada avançam as tentativas de apagar os palestinianos dos mapas
Numa manhã de setembro, os residentes de Khallet al-Daba reúnem-se em torno de um sofá colocado no centro da aldeia, nas colinas áridas a sul de Hebron. Ouve-se o chilrear dos pássaros que nesta altura do ano migram para sul, e sente-se o aroma do café servido a quem visita a pequena comunidade no extremo sul da Cisjordânia ocupada.
Com o sol nascente a desenhar os contornos das colinas douradas que se estendem pelo horizonte, a vista desta colina seria deslumbrante, se não fossem os colonatos ilegais em redor, e os destroços da última demolição que reduziu a escombros a maior parte das casas da aldeia. O sofá, centro das reuniões da aldeia, foi colocado entre as ruínas. Estamos na Área C da Cisjordânia, os 60% do território ocupado sob total controlo do exército israelita.
A serenidade desta manhã de fim de verão é enganadora. Horas antes, Khallet al-Daba foi atacada por dezenas de colonos israelitas armados que espancaram brutalmente os residentes, destruíram painéis solares, partiram janelas e furaram os tanques de água da aldeia.
“Estávamos a dormir. Eram onze e meia da noite quando apareceram de repente, todos vestidos de negro,” conta o residente Jaber Dababseh. “Primeiro pensei que era o exército. Quando vi que traziam barras de ferro e paus percebi que eram colonos. Começaram logo a atacar-nos. Eram uns 30 ou 35. Eu fugi. Atingiram-me com uma pedra nas costas. Só ouvia os gritos das crianças, das mulheres, gritos por toda a parte.”
O ataque deixou 14 feridos, cinco deles estão em estado grave no hospital. “Bateram num homem idoso, de 89 anos, que mal conseguia andar. Partiram-lhe as pernas, o braço e a cabeça. Bateram num menino de 7 anos que está em estado grave, teve uma hemorragia cerebral,” relata Jaber. Pega no telemóvel e liga à mãe da criança, que também está internada. Numa video-chamada da cama no hospital, mostra-nos os braços engessados.
“Partiram-lhe os braços enquanto ela tentava proteger a filha,” explica Abla Dababsheh, sentada ao nosso lado. Abla escapou por pouco. “Estava com a minhas filhas. Quando vi que vinham na nossa direcção, corremos pelo monte abaixo. Não podia fazer mais nada.”
Sentados no sofá com vista para os colonatos e para as ruínas da aldeia, os residentes mostram-nos fotografias chocantes dos feridos, mas garantem que esta violência não é um excecional. “Não foi o primeiro ataque em Khallet al-Daba. Nem será o último,” prevê Jaber, apreensivo.
Desde o início deste ano, as Nações Unidas já registaram mais de mil ataques de colonos israelitas contra palestinianos e os seus bens na Cisjordânia. Pelo menos 11 palestinianos foram mortos enquanto tentavam proteger as suas casas, terras ou rebanhos, e cerca de 700 ficaram feridos.
Apesar de ocorrer há décadas, a violência colonial israelita intensificou-se desde que o governo de extrema-direita liderado pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu entrou em poder no final de 2022, e em particular desde o início da guerra em Gaza, considerada um genocídio pelas Nações Unidas e organizações de direitos humanos. A violência não é apenas exercida por colonos extremistas – é uma violência estatal, que diariamente mata palestinianos, confisca terras, destrói casas e arrasa olivais, vinhas e campos agrícolas.
Pelo menos 665 palestinianos foram mortos pelo exército israelita na Cisjordânia desde o início deste ano, uma média de mais de dois palestinianos mortos por dia (em Gaza, a média pode ultrapassar os 250 mortos por dia).
Enquanto a violência contra comunidades palestinianas aumenta, multiplicam-se também as apropriações de terras e as demolições de casas na Cisjordânia. Em 2024, as autoridades israelitas declararam 23,7 km² na Cisjordânia ocupada como “terras estatais” – um novo recorde de expropriação. Só nos últimos nove meses, mais de 1,300 estruturas foram destruídas, desalojando 1,657 palestinianos.
A casa de Jaber já foi demolida seis vezes. A demolição mais recente, e também a mais devastadora, foi em maio, quando bulldozers do exército israelita arrasaram cerca de 90% da infraestrutura de Khallet al-Daba.
O presidente do Conselho Regional dos Colonatos na região de Hebron, Eliram Azulay, publicou nas redes sociais um vídeo das ruínas, a celebrar a “demolição histórica” e a agradecer ao governo, prometendo continuar o trabalho de “fortalecer a soberania” israelita na região, um eufemismo para a estratégia de várias décadas de apropriação de terras e expulsão das comunidades palestinianas na Cisjordânia.
Khallet al-Daba é uma das 12 aldeias da região conhecida como Masafer Yatta, situada nos limites da “Zona de Tiro 918,” uma área que Israel designou como zona de treino militar em 1981. Depois de uma batalha legal que durou várias décadas, em 2022 o Supremo Tribunal de Israel aprovou a transferência forçada dos mais de mil residentes palestinianos.
Jaber explica que em vez de expulsar imediatamente os palestinianos da região, Israel tem implementado uma campanha de limpeza étnica através de demolições de casas e restrições de acesso.
Enquanto as casas dos palestinianos são destruídas sob o pretexto de terem sido construídas sem autorização dentro de uma zona militar, os colonatos expandem-se com apoio do governo israelita na região. Segundo o grupo israelita Peace Now, sete novos colonatos ilegais foram estabelecidos dentro da “Zona de Tiro 918” desde 2023.
“Se um colono vem com uma caravana ou uma tenda, [as autoridades israelitas] vêm logo construir estradas e instalar água e electricidade, enquanto tudo isto nos é negado a nós que estamos aqui há mais de cem anos, para que se torne impossível vivermos na nossa terra,” denuncia Jaber. Mas a comunidade local continua a resistir ao deslocamento forçado. “Daqui não saímos,” promete.
Desde as demolições de maio, os residentes sobrevivem em tendas erguidas nas ruínas, em cavernas ou nas poucas estruturas que restam em Khallet al-Daba. (Onze dias depois da nossa visita, os bulldozers israelitas voltaram para destruir alguns dos abrigos que restavam na aldeia.)
Depois de nos oferecer café, Jaber leva-nos a uma visita guiada pela devastação da aldeia. Enquanto caminhamos pelos destroços das casas demolidas pelo exército israelita, mostra-nos a destruição mais recente causada pelos colonos: os tanques de água furados com facas, os painéis solares partidos e a escola primária com vidros estilhaçados.
Mas a visita é interrompida por uma nuvem de poeira avistada ao longe que anuncia a chegada de soldados israelitas num veículo militar a acelerar pela estrada de terra batida. “Estão numa zona militar fechada, têm de sair daqui,” diz um dos soldados com o rosto tapado. Quando pedimos para ver a ordem militar que proíbe a entrada na aldeia, os soldados recusam-se. “Não precisamos de ordens militares. Têm que sair,” insistem.
Expulsos de Khallet al-Daba, seguimos para outra aldeia ameaçada em Masafer Yatta: Umm al-Khair. Fundada por refugiados expulsos por Israel do deserto do Naqab em 1948, o nome da aldeia significa “mãe da benevolência,” mas tem sido alvo de alguns dos ataques mais cruéis.
Nos anos 80, parte das suas terras foi confiscada por Israel para a construção de uma base militar, mais tarde transformada no colonato residencial de Carmel. Enquanto o colonato de expande, Umm al-Khair vai sendo apagada do mapa através da demolição de casas, da apropriação de terras e de ataques de colonos.
No dia 28 de julho, o ativista e professor Awdah Hathaleen, participante no documentário No Other Land distinguido com um Óscar, foi assassinado a tiro por um colono israelita.
Para assinalar os 40 dias do assassinato, a comunidade local organizou uma cerimónia na escola onde Awdah ensinava inglês. No átrio, mais de uma centena de pessoas – palestinianos, jornalistas e ativistas israelitas e estrangeiros – reunem-se para homenageá-lo.
“Era uma pessoa extraordinária, muito amada,” recorda o primo, Alaa Hathaleen. “Lutava por justiça e morreu a defender esta terra.” Alaa testemunhou o assassinato. “Vimos uma escavadora israelita a entrar nos nossos terrenos privados e a destruir oliveiras. Eu comecei a filmar, porque é a única arma que temos.”
Alaa confrontou o colono junto à escavadora, identificado como Yinon Levi – sancionado pela União Europeia em 2024 pelos ataques contra comunidades palestinianas. “Ouvi dois tiros. O primeiro passou a milímetros da minha cabeça. O segundo atingiu o Awdah, que nem sequer estava perto de nós, estava a uns 40 ou 50 metros,” conta.
“Quando olhei para trás, vi que o Awdah estava numa poça de sangue. Corri até lá, peguei nele nos braços, e levei-o até ao portão do colonato, para implorar por uma ambulância. Quando o exército apareceu, começou a lançar gás lacrimogéneo. Chorei muito, porque sabia que o Awdah já estava morto.”
Dedicado a documentar os ataques na aldeia e a expor a injustiça que via todos os dias, Awdah filmou a sua própria morte. No seu último vídeo, vê-se Yinon Levi apontar a arma para a câmara e a disparar. A câmara cai, mas continua a gravar. Ouvem-se os gemidos de Awdah, e gritos, entre eles um dos três filhos do Awdah, uma criança de dois anos.
Apesar das provas, Yinon Levi só ficou detido um dia. O tribunal israelita considerou que agiu em “legítima defesa” e libertou-o, enquanto o corpo de Awdah foi detido pelas autoridades israelitas para impedir que fosse sepultado na sua aldeia. Uma semana depois do assassinato, Yinon já estava de volta a Um al-Khair, de arma na mão, a trabalhar na expansão do colonato de Carmel.
“Dois dias depois da morte do Awdeh, fui preso. Passei seis dias numa prisão israelita sem qualquer acusação,” conta Alaa, que foi detido com cerca de 20 residentes de Umm al-Khair. Segundo a associação de direitos humanos Addameer, há mais de 10 mil palestinianos em prisões israelitas, mais de um terço em detenção administrativa, sem qualquer acusação. “Estavam sempre a bater-nos e a humilhar-nos. Eu disse-lhes que podiam prender-me dez anos, se ao menos nos devolvessem o Awdeh.”
Um grupo de dezenas de mulheres de Umm al-Khair declarou greve de fome até que o corpo fosse devolvido. Depois de dez dias de pressão, as autoridades israelitas libertaram-no, mas vários familiares continuaram detidos. “[O exército] fechou todas as entradas da aldeia para impedir que o Awdah tivesse um funeral digno com as pessoas que o amavam,” conta Alaa.
Enquanto vários Estados anunciaram a intenção de reconhecer o Estado da Palestina este mês na Assembleia Geral da ONU, em Masafer Yatta, estas medidas simbólicas não são vistas como suficientes. “É um primeiro passo, mas precisamos de mais: de embargos de armas, sanções, boicotes. É tempo de agir,” diz Alaa.
O suspeito de assassinar Awdah consta na lista de sanções da União Europeia, mas restrições impostas a uns poucos indivíduos não mudaram a realidade no terreno. Yinon Levi continua a viver num colonato ilegal e a atacar comunidades palestinianas com impunidade e sob protecção do exército israelita.
Para o analista Fathi Nimer, as sanções têm de ser dirigidas às estruturas da ocupação e o regime que a sustenta. “É o governo israelita que incentiva os seus cidadãos a mudaram-se para os colonatos em violação da Convenção de Genebra, que lhes fornece água e eletricidade, que subsidia empréstimos para comprar casas lá. Esta distinção artificial entre Israel e os colonos na verdade não existe. O que temos é um só Estado de apartheid,” afirma.
Na sua perspetiva, o reconhecimento de um Estado palestiniano é uma medida cosmética, usada para evitar as obrigações legais de tomar acções concretas para prevenir e punir os crimes de genocídio, apartheid e limpeza étnica.
“Não é muito claro o que está a ser reconhecido,” acrescenta. Gaza e a Cisjordânia representam apenas 22% da Palestina histórica. E enquanto Gaza foi quase completamente destruída nos últimos dois anos, a Cisjordânia está cada vez mais fragmentada em enclaves cercados por colonatos. Cerca de 500 mil colonos israelitas vivem na Cisjordânia em mais de 140 colonatos, que apesar de serem ilegais segundo a lei internacional, continuam em expansão com o apoio do governo israelita.
Em julho, o parlamento israelita passou uma resolução em apoio à anexação da Cisjordânia. No mês seguinte, Israel aprovou o projeto “E1,” que prevê a construção de um colonato a leste de Jerusalém, isolando a cidade do resto da Cisjordânia e cortando a ligação entre o norte e o sul do território.
“Nos últimos anos, tornou-se ainda mais óbvio que nenhum líder israelita está realmente interessado em ter um Estado palestiniano. As campanhas eleitorais são sobre quem é que consegue anexar mais terra,” continua Fathi. “A solução de um só estado está a tornar-se inevitável. A questão é – vai continuar a ser um estado de apartheid, ou vai tornar-se num estado de direitos iguais?”
Em Masafer Yatta, Alaa Hathaleen não tem dúvidas. “Eu só quero viver seguro, com direitos iguais, onde nasci. Não vamos sair daqui. Vamos continuar a resistir na nossa terra.”
Fotografia: Familiares e amigos reúnem-se em torno do corpo do ativista palestiniano Awdah Hathaleen (Yosri Aljamal/Reuters)