PÚBLICO (5/2/2023)
Uma mulher jovem sorri, enquanto segura uma AK-47. Veste uma farda militar e na cabeça tem um kuffiyeh, um lenço palestiniano que não lhe cobre o cabelo negro.
O retrato desta mulher, tirado pouco depois de ter desviado um avião no Verão de 1969, tornou-se um ícone da resistência palestiniana, adaptado e reproduzido por movimentos de solidariedade com a Palestina por todo o mundo. No muro de betão que separa o território palestiniano ocupado, um enorme mural com este retrato diz: “não te esqueças da luta.” Hoje, a mulher na fotografia, Leila Khaled, tem 78 anos. Vive como refugiada na Jordânia e continua a lutar – por justiça, pela Palestina, e pela memória.
Quando a visitámos no seu apartamento num subúrbio da capital da Jordânia, Amã, uma das primeiras coisas que salta à vista é este retrato a preto e branco, emoldurado e pendurado no centro da sua sala de estar. Nas outras paredes há desenhos feitos por crianças em campos de refugiados palestinianos, plantas trepadeiras a envolver um retrato de Che Guevara e um quadro com versos de Ibn Hazm, um poeta e erudito do Al-Andalus. Numa estante vimos um inesperado galo de Barcelos, recordação de uma viagem a Portugal há quase uma década.
“Gostei tanto do galo que comprei vários e distribuí pelos camaradas”, diz Leila, que ainda hoje é militante da Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP), um grupo armado de orientação marxista-leninista, considerado terrorista por Israel, pelos Estados Unidos e pela União Europeia. Questionada sobre se conhece a história do galo de Barcelos, a lenda que envolve uma acusação injusta e um galo morto que canta, Leila diz que não.
O que lhe dá mais orgulho no apartamento é a vista, e assim que entramos chama-nos para ir ver a varanda. “Escolhi esta casa porque daqui consigo ver a Palestina”, conta, enquanto aponta para poente, para montes cobertos de neblina e nostalgia.
Leila nasceu do outro lado dos montes, para lá do rio Jordão, na cidade portuária de Haifa. O dia em que fez quatro anos, 9 de Abril de 1948, ficou marcado por um massacre de mais de uma centena de pessoas na aldeia palestiniana de Deir Yassin, perto de Jerusalém, por forças paramilitares sionistas.
“A partir desse dia nunca mais celebrámos o meu aniversário”, revela Leila. Assustada com a violência desencadeada pela partição da Palestina e a fundação do Estado de Israel em 1948, a família fugiu para o Líbano. Leila tornou-se refugiada, uma entre os mais de 700 mil palestinianos que fugiram ou foram expulsos e nunca mais puderam regressar a casa.
“A única vez que voltei a ver a minha cidade foi do avião que sequestrei em 1969. Desviámos o voo, e eu mandei o piloto sobrevoar Haifa. Até hoje não sou capaz de descrever a emoção de ver outra vez a minha cidade, a comoção de ver o que me tiraram.”
Enquanto conversamos, do outro lado do rio Jordão decorre o funeral de Jana Zakarneh, uma menina que ainda não tinha feito 16 anos, morta a tiro pelo exército israelita na cidade de Jenine. Estava no terraço de casa com o seu gato num fim de tarde de domingo quando os tiros disparados por soldados israelitas a atingiram no rosto.
Leila suspira quando fala de Jana. A violência nos territórios palestinianos ocupados tem escalado desde a recente eleição de um governo de extrema-direita em Israel, que conta com extremistas como Itamar Ben Gvir, ministro da segurança interna associado ao movimento judaico fundamentalista Kahane. Ben Gvir vive num colonato na Cisjordânia considerado ilegal segundo a lei internacional, e até há pouco tempo tinha na sala de estar um retrato de Baruch Goldstein, um kahanista que em 1994 massacrou 29 palestinianos enquanto rezavam na mesquita de Hebron, na Cisjordânia ocupada.
Só em Janeiro, as forças israelitas mataram 35 palestinianos, incluindo oito crianças e uma mulher idosa. Mas para Leila, nada disto é novidade. “Nós sofremos violência há mais de 75 anos,” diz, desde os massacres cometidos em 1948, à expulsão e despojamento dos que se tornaram refugiados, à expansão de colonatos e à brutalidade diária nos territórios ocupados. Considera que as ideias racistas e supremacistas de que os judeus têm mais direitos à terra e à vida do que os palestinianos são muito mais antigas do que este governo de extrema-direita — diz que sempre fizeram parte do projecto sionista de criar o Estado de Israel.
Ao contrário da Autoridade Palestiniana, formada após os Acordos de Oslo em 1993 e controlada pelo partido Fatah, a FPLP rejeita a solução de dois estados – Israel e Palestina – defendendo um estado democrático para todos os que vivem nos territórios entre o rio Jordão e o mar mediterrâneo. Seguindo a posição do seu partido, Leila rejeita negociações com Israel, e considera que os Acordos de Oslo não fizeram parte de um processo de paz, mas sim de capitulação. “A Autoridade Palestiniana não tem qualquer legitimidade, é uma subcontratação da ocupação israelita,” argumenta.
A sua luta é contra a supremacia e a violência israelita e contra a apropriação de terras e a expulsão dos palestinianos. Só haverá justiça, diz, quando os refugiados puderem regressar a casa e viver num país que trate todos os cidadãos como iguais. Para Leila, enquanto houver opressão haverá resistência.
Uma granada no bolso, uma pistola na cintura
Vestida elegantemente com um fato branco, um chapéu e óculos de sol, a 29 de Agosto de 1969, Leila, com 25 anos, embarcou no voo TWA 840 no aeroporto de Roma.
“Tinha uma granada no bolso e uma pistola escondida na cintura,” lembra-se, enquanto bebemos café com cardamomo na sua sala de estar. Numa mala levava dez quilos de explosivos que tapou com maquilhagem, e um livro do Che Guevara, que ainda hoje considera o seu herói.
Na altura, os sequestros de aviões ainda não estavam associados a atentados terroristas. Leila diz que eram poucas as medidas de segurança e não se revistavam as bagagens como hoje. “Era algo ainda novo, pouco conhecido,” continua, recordando o dia em que o secretário-geral da FPLP, George Habash, lhe disse que tinha sido escolhida para participar numa operação secreta.
“Perguntou-me se estava preparada para morrer, ou para ser presa. Eu disse que sim, claro que sim. Nessa altura várias mulheres palestinianas já tinham sido presas. Mas quando me perguntou se estava preparada para sequestrar um avião, eu comecei-me a rir”, conta Leila. “Eu não percebi o que queria dizer. Imaginei-me a segurar um avião nos ombros e a correr, com as pessoas a vir atrás de mim”, diz, soltando uma gargalhada na sua voz grave de fumadora inveterada.
No final dos anos 60, a Frente Popular de Libertação da Palestina foi pioneira no uso de desvios de aviões como táctica política. “O nosso objectivo era libertar presos palestinianos, especialmente mulheres que estavam em prisões israelitas, e chamar a atenção internacional para a causa palestiniana. Mas tínhamos instruções muito claras para não magoar ninguém”, sublinha.
Leila conta que o voo TWA 840 de Roma com escala em Atenas e destino a Telavive foi escolhido porque se esperava que Yitzhak Rabin, um general israelita que era na altura embaixador de Israel nos Estados Unidos, fosse um dos 120 passageiros a bordo. Mas o embaixador não chegou a embarcar. Com Salim Issawi, outro membro da FPLP, também ele refugiado de Haifa, Leila invadiu a cabine do piloto e tomou controlo do avião, desviando-o da sua rota.
“Disse ao piloto que agora era eu quem mandava, e mostrei-lhe a minha granada. Disse-lhe que éramos palestinianos da Frente Popular de Libertação da Palestina, que éramos refugiados. O piloto era americano e não sabia quem eram os palestinianos”, conta.
Ri-se quando se lembra como comunicou com estações de controlo do tráfego aéreo e como ficaram surpreendidos por ouvir a voz de uma mulher. “O nosso código era “FPLP – Liberdade para a Palestina Árabe” e começámos a ligar para várias estações com este código, tinham que se referir a nós desta maneira. A estação de controlo israelita primeiro começou a insultar-me, mas depois teve que se referir a nós pelo código,” diz com um sorriso.
“Nós queríamos que as pessoas soubessem quem éramos, que não éramos apenas refugiados que vivem em tendas e que dependem de caridade. Queríamos que soubessem que somos um povo com uma causa,” diz Leila.
“A nossa vida era miserável”
Em 1948, a família de Leila fugiu para o sul do Líbano, com a esperança de poder regressar em breve a casa. No final desse ano, depois do êxodo que ficou conhecido entre os palestinianos como Nakba, a “catástrofe”, a resolução 194 da Assembleia Geral das Nações Unidas reconheceu o direito dos refugiados palestinianos de retornar a casa, mas Israel impediu o regresso dos deslocados.
Desde então, centenas de aldeias palestinianas no que se tornou Israel foram destruídas, as casas ocupadas e as propriedades confiscadas. Nos países vizinhos, os campos de refugiados tornaram-se em bairros de lata onde ainda hoje se aguarda um regresso a casa.
“A nossa vida era miserável, tiraram-nos tudo. Eu era muito nova, mas perguntava-me porque é que tínhamos de viver assim, a depender de ajuda humanitária, quando as outras pessoas não vivem assim,” conta Leila. “A minha primeira escola era uma tenda. Sentávamo-nos no chão, quatro turmas reunidas dentro da tenda. Num dia de Inverno, a tenda caiu em cima de nós. Voltei para a minha mãe a chorar, a dizer que aquilo não era uma escola. Não gostava de nada lá; sentia falta da nossa casa, da Palestina.”
Uma das memórias mais dolorosas da infância, conta, é de estar no Líbano em casa de familiares que tinham laranjeiras como as que costumava ver na Palestina. Quando ia colher uma laranja, a mãe repreendeu-a, disse-lhe que aquelas laranjas não eram dela, que as laranjas que lhe pertenciam estavam na Palestina.
“Durante muitos anos não consegui comer laranjas”, diz Leila. Não celebrava o aniversário porque se tinha tornado no dia de um massacre, e não comia laranjas porque o travo da memória era demasiado amargo. Cresceu convencida de que só haveria justiça quando pudesse regressar a casa e voltasse a comer as laranjas do seu pomar.
“Comecei a envolver-me em política porque os meus irmãos e irmãs faziam parte do movimento nacionalista árabe. O nosso sonho era regressar à Palestina. Quando andava na escola marcávamos sempre três datas com manifestações: o dia da Nakba, a catástrofe palestiniana no dia 15 de Maio; o dia da declaração de Balfour, a 2 de Novembro, que prometeu aos judeus uma pátria numa terra que já estava ocupada por Palestinianos; e o dia 29 de Novembro, o dia em que Palestina foi dividida pelas Nações Unidas,” conta.
Em 1967, após a Guerra dos Seis Dias, Israel derrotou os exércitos árabes e ocupou a Cisjordânia, Gaza, o Sinai e os Montes Golã, passando a controlar todo o território palestiniano. A Frente Popular de Libertação da Palestina foi formada nesse ano, por membros do movimento nacionalista árabe que queriam resistir à ocupação israelita.
Leila juntou-se logo ao grupo. “Eu senti que não podíamos depender dos regimes árabes para regressar às nossas terras. Tínhamos que tomar a causa nas nossas próprias mãos. Eu queria receber treino militar, queria aprender a usar armas e participar na luta armada.”
Descreve como “lindo” o tempo que passou num acampamento militar no norte da Jordânia a treinar para lutar. Aprendeu a disparar e descobriu que tinha boa pontaria. “O que senti foi felicidade, estava sempre a sorrir por poder fazer parte da luta.”
Antes de Leila, outras mulheres — uma argentina em 1966, e até uma portuguesa em 1961 — participaram em desvios de aviões. Leila foi provavelmente a primeira mulher a liderar o desvio de um avião, mas para a militante palestiniana pouco importa se foi ou não a primeira. “Eu só queria fazer alguma coisa pela nossa causa. Claro que não íamos libertar a Palestina com os desvios de aviões, mas foi a táctica que encontramos para libertar presos palestinianos e para chamar a atenção para a causa”, diz.
O avião sequestrado foi desviado para a Síria, onde todos os passageiros foram libertados, excepto dois israelitas que ficaram detidos como reféns, até serem libertados meses mais tarde numa troca de prisioneiros. Antes de aterrar em Damasco, Salim Issawi, o companheiro de Leila da FPLP, declamou versos do poeta egípcio Ahmed Shawqi, que falam de catástrofe, de um “coração que não esquece” e da luta árabe contra o colonialismo europeu.
Mas o sequestrador que declamava poesia anticolonial não foi o foco das notícias. A imprensa internacional ficou fascinada com a jovem mulher armada que diziam que se parecia com a actriz Audrey Hepburn. Chamaram-lhe “bela e perigosa” e um jornal norueguês chegou a fazer piadas sobre as suas “bombas,” calão na língua norueguesa para seios.
“Numa conferência de imprensa, o piloto disse aos jornalistas que eu era uma mulher muito atraente. Imaginem! Eu tive uma arma apontada a ele, podia tê-lo matado. E ele vai dizer à imprensa que sou atraente?”, pergunta Leila, indignada com o foco na sua aparência e com a forma como foi objectificada pela imprensa da época.
Mas a atenção que recebeu não foi apenas uma fonte de frustração e indignação. A reprodução das suas fotografias em jornais de todo o mundo colocava em causa a sua participação em outras operações, uma vez que seria facilmente reconhecida. Para resolver o problema, Leila recorreu a várias cirurgias plásticas para alterar a aparência.
Um ano depois, com o rosto já transformado, Leila participou num segundo sequestro de um avião da companhia israelita EL AL. Ao mesmo tempo, três outros aviões foram desviados por grupos da FPLP. Mas desta vez a operação em que Leila participa com Patrick Arguello, membro do movimento Sandinista da Nicarágua, não corre como esperava. Quando vê dois militantes armados à porta da cabine, o piloto faz o avião descer em queda livre. Leila perde o equilíbrio e é capturada, enquanto que o seu companheiro é morto a tiro por um segurança israelita.
“Quando vi que o meu camarada tinha sido abatido comecei a gritar. Quando o avião descolou, ele tinha-me dito que estava com fome e eu disse que tinha que esperar até ao fim da operação para comer. Fiquei muito zangada comigo mesma, porque deixei o meu camarada morrer com fome,” conta. Leila diz que devia ter sido ela a morrer, porque Patrick era apenas um voluntário sandinista, solidário com a causa palestiniana.
Capturada durante a operação, Leila foi detida em Londres, onde o avião aterrou de emergência. Apesar de ser incontestável a sua participação nos dois sequestros, nunca enfrentou acusações em tribunal porque foi libertada após um mês de detenção através de uma troca negociada pela FPLP, que tinha feito reféns vários passageiros britânicos nos outros voos sequestrados ao mesmo tempo.
Perguntamos a Leila como se sentiu ao fazer os passageiros reféns e ao colocar a vida de civis em perigo. “Não me arrependo de nada,” diz firmemente. “Pedi desculpa aos passageiros. Disse-lhes que lamentava ter causado pânico. Claro que as pessoas estavam com medo e algumas podem ter ficado traumatizadas. Duas mulheres israelitas mais velhas estavam com tanto medo que molharam as calças. Mas não magoámos ninguém.”
Apesar do pânico causado, em entrevistas à imprensa um passageiro tentou encontrar justificações para o que levou Leila e o seu companheiro a sequestrar o avião. “Estava a bordo um assassino israelita, responsável pela morte de muitas crianças e mulheres árabes e o que eles queriam era trazer este assassino para uma cidade árabe aliada e levá-lo a julgamento”, explicou o passageiro numa entrevista. Uma hospedeira de bordo disse à imprensa que era “uma pena que os palestinianos ainda não tenham um país”.
Durante os dois sequestros, a única pessoa que morreu foi o militante Patrick Arguello. “No final das operações, todos os passageiros foram libertados e regressaram a casa. Mas nós não. Ainda somos refugiados e não podemos voltar a casa”, diz Leila.
O lugar da violência
Apesar de Leila e do porta-voz da FPLP declararem publicamente o compromisso de evitar a violência contra pessoas inocentes e um foco em alvos militares, várias das operações do grupo armado resultaram na morte de civis, como o bombardeamento de um supermercado em Jerusalém que matou dois estudantes em 1969, e um atentado suicida num mercado central em Telavive que matou três pessoas em 2004.
Para Israel, os Estados Unidos e a União Europeia, a FPLP é uma organização terrorista, responsável por sequestros de aviões entre os anos 60 e 70, atentados bombistas e o assassinato de oficiais israelitas. Mas Leila tem uma definição diferente do que é terrorismo. “Quando vêm dizer-nos que somos terroristas, a minha resposta é que o verdadeiro terrorista é o Estado de Israel. Terrorismo é a ocupação. Terrorismo é apropriar a nossa terra, roubar as nossas casas e fazer de nós refugiados”, defende.
“Gangues sionistas cometeram massacres em Deir Yassin, em Tantura. Apagaram do mapa mais de 400 aldeias palestinianas. Fomos massacrados em Sabra e Shatila, em Jenin. Todos os dias há pessoas a ser mortas pelo exército ou por colonos na Palestina. Vamos lembrar-nos da jornalista Shireen Abu Aqleh, assassinada só porque falava da realidade no terreno,” diz.
“A única forma que temos de enfrentar esta violência é através da violência revolucionária. Temos o direito de resistir. Outros povos oprimidos também lutaram pela liberdade, contra o colonialismo. A lei internacional reconhece que os povos ocupados têm o direito de se defender, mesmo através da luta armada,” argumenta.
Leila tenta justificar as tácticas violentas usadas por necessidade e desespero. “Não temos outra escolha. Não temos o luxo de escolher. Não podemos enfrentar toda esta injustiça só com protestos ou com meios pacíficos. A liberdade requer sacrifícios. Claro que temos pena das vítimas. Mas para os palestinianos a linha entre a vida e a morte é muito ténue”, diz.
“A vida sob ocupação não é vida” continua Leila. “Imaginem em Gaza, o que é dois milhões de pessoas viverem sitiadas, numa prisão a céu aberto, sem electricidade, com água poluída. Quantos civis, quantos milhares de crianças já morreram? O exército israelita mata crianças, porque sabe que quando crescerem vão lutar contra Israel, vão lutar para acabar com o sofrimento diário.”
Para Leila, a forma como a resistência palestiniana é categorizada como terrorismo está cheia de hipocrisia e de padrões duplos. “Vimos como o mundo lidou com os ucranianos, mas esqueceram-se de nós. A Nakba, a catástrofe palestiniana, continua.”
Amar, ser amada; ser mãe e avó
Para além da causa palestiniana, Leila passou a vida a lutar também contra as restrições patriarcais da sua sociedade e as tradições mais conservadoras que tentam subjugar e confinar as mulheres. Numa autobiografia publicada em 1973 com o escritor palestiniano George Hajjar, também ele membro da FPLP, Leila conta como muitas vezes se debateu com obstáculos e preconceitos por querer estar no espaço público e fazer parte da luta armada.
Inicialmente, a mãe opunha-se à sua participação no movimento nacionalista árabe. Na noite de uma reunião importante, Leila teve que fugir de casa de pijama para poder participar. Mas em vez de ser apoiada pelos camaradas pela sua dedicação à causa, foi criticada por aparecer na reunião num traje “indecente”.
Depois dos sequestros de aviões, foi eleita para a direcção da União Geral das Mulheres Palestinianas, e tornou-se membro do Conselho Nacional Palestiniano. “No início, estava na ala militar da FPLP, mas passei também a trabalhar com mulheres, a falar sobre os nossos direitos,” diz.
Tornar-se mãe de duas crianças não a fez abandonar o trabalho político. Pelo contrário, deu-lhe ainda mais motivação para lutar por um futuro melhor para os seus filhos. “Fazer parte da luta não significa que não posso fazer mais nada. Tenho o direito de ser lutadora e de amar e ser amada, de me tornar mãe e avó. Claro que por vezes não é fácil conciliar o meu trabalho com a minha vida pessoal, mas tento certificar-me que tenho sempre tempo para a minha família,” diz Leila, que tem dois filhos e duas netas.
Perguntamos como imagina uma Palestina livre e o que significaria para ela a libertação do território. “A chave para a libertação está na posse da terra e nos direitos dos refugiados. Queremos criar com as pessoas que estão lá, os israelitas, uma democracia onde temos todos os mesmos direitos e deveres. A coexistência é possível,” defende.
Lembra-se de uma amiga judia, chamada Tamara, que era sua vizinha em Haifa. “Costumávamos brincar juntas, à porta de casa. Nós sabíamos que [os nossos vizinhos] eram judeus, mas para nós eles também eram palestinianos. Quando fugimos, perguntei à minha mãe se a Tamara também vinha connosco, mas a minha mãe disse que não,” conta Leila, que na altura não entendia porque é que a sua amiga judia podia ficar em Haifa e ela não. “Não sei onde a Tamara está hoje, se vive em Haifa ou não. Mas ela devia lembrar-se de mim. Eu era amiga dela,” diz.
Em 2004, enquanto estava a fazer um filme sobre Leila, a realizadora Lina Makboul visitou a sua casa em Haifa. Do edifício em ruínas, Lina trouxe-lhe um azulejo, que deixou Leila em lágrimas. Ao fim do dia, as pessoas regressam a casa, mas ela não pode regressar. E da sua casa só lhe restam as memórias e um azulejo.
Qual seria a primeira coisa que faria se pudesse voltar a Haifa? Leila não precisa de pensar muito para responder: “Dormia debaixo de uma laranjeira”.
English version for The New Internationalist: https://newint.org/issues/2023/06/21/palestine-occupation-uprising