FUMAÇA (17/12/2020)
Na semana passada, o trabalho Yazidis: O genocídio esquecido foi reconhecido com uma das cincos menções honrosas da 22.ª edição do Prémio AMI – Jornalismo Contra a Indiferença, um ano inédito, já que nunca tantos trabalhos tinham sido premiados. Escrevo para partilhar um pouco mais sobre estas histórias que o Fumaça encontrou tempo e espaço para contar.
Parti para o Curdistão no final do inverno, em março de 2019, com um plano de dez dias: ia celebrar o Newroz, o ano novo Curdo, em Suleimania, escrever uma reportagem sobre o significado desta celebração que marca o começo da primavera, e passar o resto do tempo entre Erbil, a capital da região curda do Iraque, e Dohuk, perto da fronteira síria, a entrevistar sobreviventes Yazidis, terapeutas e ativistas sobre como o povo Yazidi estava a lidar com o trauma do genocídio.
Fui só com uma mochila pequena e achei que ia preparada. Tinha um bloco cheio de notas sobre o genocídio, e ia repetindo os números para mim própria: 7.000 mulheres e crianças raptadas, vendidas e escravizadas, 5.000 pessoas mortas. Li os relatórios de organizações não-governamentais e das Nações Unidas, livros, memórias e estudos que encontrei. Mas não havia preparação possível para enfrentar a devastação, o sofrimento, o abandono destas pessoas. E à medida que me aproximava mais, que lia mais, sentia vontade de ir ainda mais fundo, de querer compreender como e porquê, em 2014, se perpetrou uma das mais brutais campanhas contra um povo e contra a dignidade humana.
Mesmo depois de voltar à Jordânia, onde estava a viver, e de entregar as reportagens escritas em inglês que tinham sido encomendadas, as histórias continuavam comigo. Normalmente, quando acabo uma reportagem, sinto que posso começar a trabalhar sobre outro tema. Mas o genocídio Yazidi tornou-se quase numa obsessão. Os relatos e a violência continuavam a assombrar-me, inquietava-me o esquecimento, a indiferença.
Surgiu, então, a oportunidade de contar estas histórias em português. O Fumaça tinha interesse em saber mais sobre o genocídio, e em perguntar o que tinha sido feito em Portugal.
Eu estava na Jordânia – sentada ao lado de uma bateria e guitarras elétricas, num estúdio de um amigo que normalmente é usado por bandas de rock e jazz para ensaios, na capital, Amã – quando entrevistei Teresa Violante, advogada especialista em Direitos Humanos, que se dedicou a promover a causa Yazidi em Portugal. Acompanhou sobreviventes Yazidis quando foram recebidas no Parlamento português. Na nossa casa da Democracia, foi-lhes prometido que o genocídio iria ser reconhecido. A falar comigo a partir do estúdio Fumaça, em Lisboa, ela sublinhou a importância deste reconhecimento, não apenas simbólico, mas fundamental para que os crimes fossem levados a tribunal. Disse-me que esta promessa ainda não tinha sido cumprida.
“Senhores deputados”
Nesse verão, quando cheguei a Lisboa, o Pedro, que editou o trabalho, pediu-me para ir mais fundo. Insistiu que não bastava dizer que o genocídio ainda não tinha sido reconhecido em Portugal, apesar das promessas feitas. Antes, que era preciso perguntar porquê. Tentei falar com cada um dos deputados que receberam Farida Khalaf, sobrevivente do genocídio.
“Estão todos de férias,” disse-me a secretária de um grupo parlamentar. Estávamos em julho e, ao telefone, a voz soava impaciente. “Não percebo o seu email. Yazidis? Não entendi”, continuou, sem esconder um tom irritado. “Não é assim que se escreve um email. Não se escreve ‘deputados’, tem que escrever ‘senhores deputados’.”
A única deputada que respondeu aos pedidos de entrevista foi ‘a senhora deputada’ Maria Manuel Rola, do Bloco de Esquerda. Pouco depois do trabalho ter sido publicado, enviou-me um email dando a novidade de que o voto para o reconhecimento do genocídio contra o povo Yazidi tinha sido consensualizado na Comissão Parlamentar de Negócios Estrangeiros e que iria ser oficialmente apresentado a votação. Foi aprovado, por unanimidade, no dia 29 de Novembro de 2019.
Uma outra forma de reconhecimento apareceu depois. Na semana que passou, recebi um telefonema da AMI a dizer que o nosso trabalho sobre o genocídio tinha recebido uma menção honrosa. Na cerimónia de entrega de prémios, só o meu nome foi mencionado, mas este trabalho só poderia ter sido feito em equipa. É do Pedro, que me pediu para ir mais fundo, e que se sentou comigo durante horas e horas a editar cada frase, para não simplificar o que é complexo e não complicar o que é simples. É do Bernardo, que fez magia com as poucas gravações de áudio que eu trouxe do Curdistão, e que tinham sido feitas apenas para servir de apoio a uma reportagem escrita. Com as músicas Yazidis e curdas que reunimos, mostrou-me que a música também conta histórias e também pode ser jornalismo. É da Joana, que fez o design baseado em desenhos feitos por sobreviventes Yazidis em sessões de terapia. É da Margarida, que fez a revisão de cada palavra das quase quarenta páginas que serviram de guião ao trabalho. É da Bahar Ali, da Bayan Rasul, da Vian Shawqi, do Khidher Domle, do Hadi Pir e do Hussam Abdullah, que me receberam a mim e às minhas perguntas, e que continuam a lutar pela memória e pela justiça.
Desde que os encontrei, há mais de um ano, pouco mudou. O genocídio é um processo, não é um evento no passado. Cerca de 200.000 Yazidis continuam deslocados, a viver em campos de refugiados; mais de 3.000 mulheres e crianças continuam desaparecidas. À medida que o tempo passa, as esperanças de as encontrar são cada vez menores; e há ainda dezenas de valas comuns por exumar. Os confrontos mais recentes entre forças curdas – envolvendo o PKK e os peshmergas – , os ataques aéreos do governo turco e as disputas entre o governo de Erbil e o governo de Bagdade tornam ainda mais instável a situação na região, e difícil um regresso dos Yazidis a Sinjar. Não pode haver paz sem justiça. E, até agora, apenas um homem foi levado a tribunal, na Alemanha, acusado de genocídio.
Sobre o reconhecimento
Para além dos votos no Parlamento, dos prémios e menções honrosas, o reconhecimento pode ter outras formas. Uma delas é poder escrever às pessoas que entrevistei há mais de um ano a dizer que longe do Curdistão, do outro lado do Mediterrâneo, há quem esteja a ouvir as suas histórias e a sentir solidariedade com a sua luta.
Para mim, é o mais importante: querer ouvir, querer entender, não aceitar que a violência se banalize, não ficar indiferente. E mais do que ser contra a indiferença, é ser contra a tendência de reduzir os sobreviventes a vítimas, a sujeitos passivos que dependem de ajuda humanitária. Este não é um trabalho que quer “dar voz”, é um trabalho que quer ouvir. Nas palavras de Arundhati Roy, toda a gente tem voz, o problema é haver quem não seja ouvido. Vozes que não se ouvem porque são silenciadas, ou porque alguém fala mais alto ou por cima. Vozes abafadas em campos de refugiados, em centros de detenção, nas periferias, em fábricas, atrás dos balcões, vergadas a apanhar fruta ou a limpar o chão que outros pisam.
O que me deixa mais satisfeita com o reconhecimento – das mensagens de pessoas que gostaram de ouvir a série, ao voto no Parlamento e à menção honrosa – é saber que, por cá, há quem esteja a ouvir.
Por isso, resta-me agradecer-vos. Obrigada por continuarem a ouvir.